A Relação simbiótica entre uma lebre e uma pantera negra - Capítulo 62
Alternando o olhar entre o relógio de bolso e Ash, pisquei. Podia não estar mais na forma de coelha, mas seria demais aparecer no meio do baile assim. Não apontariam lanças para mim imediatamente, se entrasse toda descabelada e acompanhada de uma besta selvagem?
‘Mas não posso voltar para o Rune.’
Não é que ele não fosse confiável, mas não podia depender dele, seja pelo status ou pelo relacionamento dele com Ahin. Enquanto balançava os joelhos, olhei para a doutora. Ela retribuiu o olhar e sorriu gentilmente.
‘Por enquanto, a identidade dela está garantida.’
Ela era alguém que se preocupou comigo e me aconselhou sobre as panteras negras enquanto eu estava no Qatar. Minhas mãos escorregaram pela mesa e cobriram as costas da mão da doutora. Ela puxou a mão para longe rapidamente, como se soubesse que eu ia fazer um pedido. Foi o mais rápido que já vi ela se mover. Ainda sorrindo, a encarei.
“Professora Janna.”
“Não fale nada, Vivi, Não me olhe com os olhos assim. Vou acabar fraquejando.”
“…Meus olhos são assim naturalmente.”
“Só quero garantir que não vou me comprometer com nada.”
Após um momento de silêncio, ataquei como uma pantera negra avançando na presa.
Voosh. Paf. Paf. Paf. O quarto se encheu com o som de uma pessoa que queria segurar as mãos e de outra que queria evitá-la.
***
Passando pelo jardim que levava até o salão de banquetes, olhei para o enorme prédio com telhado na forma de domo.
‘Ai, meu Deus.’
Não era exagero dizer que o local onde aconteceria o baile era tão grande que mais parecia uma mansão separada. A riqueza do líder do clã das lebres, o Lorde Amon, estava mais que comprovada. Me perguntei se ostentar era a razão pela qual ele tinha convidado até mesmo nobres de clãs predadores, que não costumavam ter muito contato com os herbívoros.
‘É por isso que tenho que encontrar Ahin logo.’
Mesmo que os Labians comparecessem, eu não sabia se ia conseguir circular pelo baile em segredo e encontrar meus pais. Enquanto olhava para o prédio, boquiaberta, passei a vista pelo o meu vestido, que ia até os pés. Era um tecido caro com decorações e bordados prateados.
Um vestido e um penteado dignos de um baile me foram dados pela doutora Janna, após eu oferecer subornos e uma breve explicação da situação.
“Aqui na mochila de Ash tenho um estudo sobre os feromônios do clã dos guaxinins, patrocinado pela Família Benzene. É mais difícil de obter do que qualquer vestido ou joia.”
Me sentia um pouco mal por ter passado adiante o presente de boas-vindas à Mansão Coelho que tinha recebido de Evelyn, mas, ao mesmo tempo, era a primeira vez que esse ser maldoso estava sendo útil para mim. Mexi no meu cabelo e arrumei a barra do vestido. Queria ficar o mais invisível o possível, mas…
“Se ficar sem graça demais, vai chamar mais a atenção.”
O resultado na minha sugestão foi uma rejeição imediata da doutora e de suas criadas.
‘Me sinto estranha…’
Especialmente pelo cabelo, que tinha sido cortado na altura da cintura. Me lembrei do momento no qual uma criada me mostrou tesouras cintilantes e me olhou de modo que parecia ter acabado de criar uma obra prima. Me movendo devagar, me aproximei de um lago à minha direita. Acima da minha cabeça, a lua cheia brilhava. Refletido na água, não havia um ser estranho sem roupas e com cabelo até os pés.
‘Eu pareço um pouco com uma pessoa normal.’
Estava com o cabelo preso em um meio-rabo, decorado com enfeites. Minha pele pálida estava completamente coberta por roupas, o que me fazia parecer mais saudável. Satisfeita com minha aparência, continuei caminhando.
Felizmente, os feromônios em um baile de herbívoros não eram tão fortes quanto os do baile que eu tinha estado no território de predadores. Além disso, escutei que tinham varandas onde se podia ir para evitar quem você não quisesse ver.
‘Como por exemplo, Rune.’
“Por quanto tempo pretende me seguir?”
Os passos atrás de mim pararam. Rune estava olhando para longe, como se não tivesse me seguindo ou sequer escutado. Ao contrário de Ahin, que estava sempre arrumado, ele estava com alguns botões mal fechados, apesar de usar uma gravata borboleta.
“Não sei se você vai desaparecer de novo, que nem nessa madrugada.”
“Não vai acontecer, então não precisa me seguir.”
“Desde o Qatar você falou para eu não te seguir. Então você quer vir atrás de mim, em vez disso?”
Óbvio que não. Pisando no chão com firmeza, fiz que não com a mão, em vez de falar. O hábito gerado por ser um coelho era meio assustador.
“É por isso que é inútil ser gentil.”
“Quê?”
“Você não se preocupa com os outros e desaparece sem falar uma palavra. Ash, a pantera negra, está sendo cuidada por Restin agora. Ele precisou ter muito trabalho para vir até aqui, e foi tudo em vão.”
Parecia que o clã dos leões tem muitas reclamações a fazer. No entanto, o que Rune falou era verdade. Coloquei as mãos na cintura para não perder.
“Não é verdade que eu não me preocupo.”
“É o que parece.”
Não posso procurar meus pais em segredo com você do lado! Nesse lugar, cheio de herbívoros, a atenção de todos estava focada em Rune. Os guardas estavam olhando para ele o tempo todo.
“Enfim, não me siga.”
“Uau, já conseguiu o que queria, e agora vai me jogar fora. Que coelha fria e calculista.”
O encarei com um olhar duro, e Rune afrouxou a gravata borboleta com uma expressão cansada.
‘Ufa.’
Segurei a barra do vestido, que ficava se enrolando nas minhas pernas, e me aproximei de Rune. Ele fez uma cara de surpresa e deu um passo para trás.
“….?”
Achando estranho a expressão dele, diferente de sua cara relaxada de sempre, também dei um passo para trás. Surgiu uma distância de três passos entre nós. Após encarar Rune um pouco, abaixei o olhar. Por que esses predadores são tão bonitos que é difícil olhá-los por muito tempo?
“…Você curou minha bochecha ontem.”
Olhei para cima de novo, e Rune apontava para sua bochecha esquerda, que estava inchada ontem, mas já estava intacta. Talvez tenha sido quando eu soltei feromônios em resposta aos feromônios de Rune. Ele apontou para os lábios e continuou.
“E, naquela vez, curou o ferimento causado por Ahin. Agora eu entendo.”
Eu já tinha o curado duas vezes, era impossível que ele não fosse perceber. Esse predador queria meus feromônios para si, também. Querendo correr, apertei a barra do vestido com força.
“E também, eu escutei toda a sua conversa com a Professora Janna, então já sei de tudo.”
Rune mexeu em sua franja. O cabelo ondulado, que estava bem penteado, ficou desalinhado outra vez.
“Como você chegou ali?”
No momento em que eu estava escutando a história sobre a humanização tardia de Russell e confessando à doutora, escutei um barulho e, ao me virar, vi Ash arrastando Rune, que estava do lado de fora da varanda, pelas roupas.
“Os amigos de Russell me deram uma dica.”
“Escutei que você lutou silenciosamente com Ash por dez minutos antes de ser descoberto.”
“Ah, as crianças que me atrapalharam. Eu não teria feito nenhum barulho.”
“…Já que você já ouviu tudo, não deveria ter nenhuma pergunta para me fazer.”
Afinal, agora ele sabia que eu era um ser humano incompleto. Fiquei um pouco chateada por ser descoberta pela única pessoa que pensava que eu era uma mulher-besta comum.
Bleng. Bleng.
Nesse momento, o sino da torre tocou para anunciar o início do banquete. Me inclinei e girei, voltando a andar. Os olhos de Rune, que sempre estavam desfocados, tinham um brilho claro hoje.
“Por que fez reverência, Senhorita Coelha?”
“Estou grata por você não ter ferido a Ash.”
Por ter segurado Ash na varanda para evitar que ela fizesse barulho, a roupa dele tinha ficado toda rasgada.
“Parando pra pensar, acho que me feri nessa hora.”
Rune tocou no braço e fez uma cara de dor. Era óbvio que era mentira.
“Se feriu?”
“Sim, estou assustado.”
Ele não sabia o quão assustadores eram os caninos que ele está exibindo assim, à luz da lua. Escondendo meus dedos trêmulos, toquei no braço dele de leve.
“…Aqui. Obrigada por ter me tratado como um ser humano.”
Não sei se foi por curiosidade ou para se vingar de Ahin, mas ele me ajudou, no fim das contas. Girei para ir embora.
“Espere um minuto.”
Antes que percebesse, Rune segurou meu pulso. O cabelo cor-de-rosa claro apareceu bem na minha frente.
“Não… deixa pra lá. Se é algo tão importante que você não contou nem para o Grace…”
Rune, que soltou meu pulso rapidamente, se afastou. Aí começaram os meus problemas. Devido a roupa complicada, acabei embolando as pernas e caí sentada no gramado.
“Coelha, você está tentando me fazer rir?”
Rune, se acocorando ao meu lado, perguntou numa voz estranha.
“Não ria.”
“Hahahaha!”
“…Predador grosseiro.”
“Eu escutei tudo. Vai dizer que sua língua escorregou, não é?”
Se levantando, ele coçou as orelhas. Esse comportamento tranquilo me fez ficar com ainda mais raiva.
“E então, que horas pretende chegar no salão de banquetes? Amanhã, talvez?”
“Não coce as orelhas em público.”
Foi o início de minha batalha solitária, sem ter nem mesmo Ash comigo.
***
Rune, que ficou parado enquanto as costas de Vivi se afastavam, pôs a mão na nuca. Era difícil para ele parar de prestar atenção nela, que sempre estava em perigo e se esforçava tanto. Para sobreviver, para viver. Seja como que for, era algo difícil para um predador imaginar.
“Obrigada por ter me tratado como um ser humano.”
Estas palavras estavam ressoando até agora nos ouvidos de Rune. Isso significava que ele tinha se envolvido ao ponto que a Coelha tinha decidido traçar uma linha. Ele só estava interessado em provocar a raiva de Ahin Grace. Mas tinha sido difícil focar a atenção propriamente desde o momento em que ele encarou aqueles assustados olhos violeta debaixo da mesa.
‘Eu não pensei que ela tivesse acabado de se humanizar.’
Era uma situação tão ridícula quanto um leão agachado debaixo de uma mesa junto a ela.
‘Então é verdade que ele a recolheu por acaso.’
Ahin tinha a trazido para casa pensando que era um coelho, e depois descobriu que era uma mulher-besta. E Rune, por acaso, foi o primeiro a ver a primeira humanização dela, na noite do baile. Agora ele podia entender o comportamento dela naquela hora. O olhar ansioso, a hesitação, a dificuldade em falar, tudo estava explicado. Rune tocou sua bochecha, que estava completamente curada.
‘Feromônios de cura…’
E a relação com Ahin Grace… Desacostumado a pensar em coisas muito complicadas, ele esfregou a cabeça com força.
“Aah, não sei de nada.”
“Cawwww-!”
O som de um pássaro. Rune, que estava caminhando com as mãos nos bolsos, olhou para cima. A temperatura dos olhos dourados pareceu diminuir.
‘A águia de Grace.’
Quinn estava voando diagonalmente sobre o domo do prédio.
***
Os candelabros iluminavam a multidão. O barulho de conversas em voz baixa ressoava por todo o salão. Abrindo caminho entre as pessoas, Aven Labian estava ansiosa para socializar com os outros nobres. Próxima à janela, ela caminhava sobre o carpete púrpura. Seu olhar pousou em Ahin, que estava apertando a mão do líder do clã das lebres.
Tradução: Nopa.
Revisão: Holic.