A Relação simbiótica entre uma lebre e uma pantera negra - Capítulo 28
A região de Qatar era conhecida como uma área neutra entre os territórios dos lobos e das panteras negras, e era um local onde homens-besta de várias espécies conviviam. Também considerada uma zona comercial, a cidade era bem agitada.
Foi numa hospedaria nesse local que eu despertei. Não estava mais na forma humana. De acordo com o que os cavaleiros me disseram, eu dormi um dia inteiro. Talvez, por isso, meus feromônios estavam calmos e estáveis.
Ahin e Evelyn tinham saído, mas era bom não ter que encará-los por enquanto. Eu tinha muito sobre o que pensar, desde a recuperação de Ash até minhas próprias circunstâncias. Minha boca estava seca de nervosismo. Agora que tinha sido pega transformada em humana, não conseguia imaginar o que Ahin faria. Seja como fosse, previa que teria novos problemas…
<Ash, não grude tanto em mim.>
Pensando que ela iria me sufocar, cocei o estômago de Ash, que deitou de barriga para cima. Estávamos na cama de num quarto desconhecido, com paredes vermelhas e móveis antigos. E, sentados nas cadeiras douradas do quarto, haviam dois leões nos observando.
Um era Rune Manionz, que eu já tinha encontrado muitas vezes, e o outro era um homem-besta leão que eu nunca tinha visto. Um jovem com cabelo loiro comprido amarrado de um jeito frouxo na lateral e um monóculo. Sua postura ereta e olhos afiados mostravam ser uma pessoa séria. Ele chamava Rune de “lorde”, por isso, deduzi que devia ser seu secretário.
Os cavaleiros mencionaram que Ahin havia solicitado ajuda à mansão Grace, mas por que eles enviaram pessoas que nem mesmo são do mesmo clã? Quando eles haviam chegado, os cavaleiros pareceram surpresos. Acima de tudo, me incomodava a maneira como o secretário me lançava um olhar como se soubesse de tudo.
<Para de me encarar, minha cara vai rachar.>
Como não podia gritar isso pra ele, agitei minha pata dianteira em um punho na direção dele. A ideia era ameaçá-lo, mas o secretário arregalou os olhos, e eu simplesmente voltei a coçar a barriga de Ash.
<Céus, está tão feliz assim?>
Ash, que rolou na cama, parecia extremamente saudável para alguém que esteve à beira da morte. Isso me deixava muito feliz. Continuei a afagando com um sorriso. Não sabia se ela compreendia minha consciência pesada ou não, mas Ash continuava rolando e pedindo que eu alisasse seu estômago. Já era a décima vez. Não podia negar um pedido dela depois de tudo que aconteceu. Então continuei a afagando, sem parar.
Quando me cansei demais para continuar, deitei a cabeça no travesseiro, ainda usando a pata traseira para afagar. Nesse momento, o secretário, que havia encarado por muito tempo, abriu a boca.
“Já passou mais de uma hora desde que entramos. Um homem-besta não conseguiria se manter na forma animal por tanto tempo assim. Mas então, o que é ‘aquilo?’”
Rune, que estava estirado na cadeira, olhou para mim.
“Bem… A refeição de emergência do Lorde Grace? Ah, não, era ‘lanche de emergência’.”
“…Explique de uma maneira que faça sentido, meu Lorde.”
“Foi o que Evelyn me falou, pelo menos.”
Evelyn, aquele desgraçado. Continuava me apresentando para os outros como se fosse comida.
“Mas não esqueça que ele é louco, meu lorde.”
<Isso mesmo, isso mesmo.>
Era tão verdade que cruzei as patas e assenti. O rosto do secretário ficou pálido quando me viu fazer isso. Era como se tivesse visto uma criatura de outro mundo.
“Que coelho normal nesse mundo é tão corajoso que pode coçar a barriga de uma pantera negra!?”
Eu não era corajosa, só estava fazendo o que Ash me pediu. Era um mal-entendido injusto para mim, que estava com as patas doendo de tanto coçar.
“Quero dizer, ela claramente entende as nossas palavras.”
Olhando para o secretário, que tremia, pensei que essa era uma reação normal para quem me visse pela primeira vez. Parando para pensar, após se humanizar pela primeira vez, os homens-besta, nas suas formas animais, apareciam como animais adultos. Mesmo após virar humana, me mantive na forma de coelha bebê. Talvez seja porque não me humanizei por completo? Os feromônios e outras perguntas ainda não tinham resposta, também.
“Restin, essa atitude é rude com ela.”
“Mas, Lorde…”
“Peço perdão pelo meu secretário, ele tem a mente meio fechada demais.”
Olhando para ele com desgosto, Rune deu um tapinha nas costas do secretário.
“Vamos, se apresente a ela. Você não lhe disse seu nome.”
“Espere um segundo. Lorde, quer que eu cumprimente uma coelha bebê?”
“Restin.”
A voz severa de Rune fez com que o secretário abaixasse os ombros, em derrota. Ele se aproximou, forçado, e chegou na cama onde eu estava com Ash. Parecia que a última coisa que ele queria fazer na vida era me cumprimentar, mas ainda assim, colocou a mão sobre o coração, saludando.
“Peço perdão pelo atraso em me apresentar. Sou Harrinton Restin, o terceiro filho da família Restin, e assistente de Rune Manionz.”
A polidez dos modos dele me fez lembrar dos nobres que via interagindo na mansão Labian. Mas nunca tinham se dirigido dessa forma para mim.
<Sou Vivi.>
Após pensar um pouco, estirei a pata dianteira para cumprimentar Restin. Era o melhor que podia fazer no meu estado atual. Em vez de apertar minha mão, ele deu um pulo para trás, apavorado. O seu salto fez com que ele batesse a perna na mesa.
<Mas que cara covarde…>
Nunca tinha visto alguém tão covarde assim. Ouvi um som estranho no quarto e me virei. Rune, sentado em sua cadeira, estava tremendo de tanto rir. Ele parecia estar se divertindo. Olhei para Ash com a testa franzida.
<Ash, todos os predadores são bizarros assim?>
Os ronronados de Ash ecoaram pelo quarto, como se ela quisesse dizer “eu não sou.”
***
Uma porta fechada separava a varanda do quarto. O cavaleiro, encarregado por Ahin de me manter em segurança, olhava nervosamente através da janela. Acenei com a pata para dizer a ele que estava bem. Restin, ao lado dele, ainda parecia apavorado. Seu cabelo loiro estava tão desgrenhado por causa do salto que parecia mesmo a juba de um leão.
“Bem, agora podemos conversar sem que nos escutem.”
Rune, que fechou as cortinas da varanda para bloquear a visão de todos, me falou.
“Queria falar com você antes, mas precisei me acostumar com a ideia.”
<Se acostumar? Como assim?>
Estava sentada ao lado de Ash, que novamente estava alerta. Como Rune foi a primeira pessoa a me ver na forma humana, imaginei que tivesse algumas perguntas.
“Bem, é impossível conversarmos com você desse jeito… Por que não se humaniza?”
Se eu conseguisse, não estaria sentada assim agora. Chacoalhei a cabeça, negando. Não estava no meu controle.
Rune se agachou para ficar com a cabeça da minha altura.
“Por que está escondendo o fato de que é uma mulher-besta?”
É verdade que eu tinha escondido no começo, mas Ahin já descobriu tudo. Fiquei em silêncio porque era impossível responder.
“Você me chutou na boca para que eu não contasse que tinha se transformado. Então, aparentemente, Ahin Grace não sabe de nada.”
Bem, até eu ser descoberta ontem, era verdade. Me grudei em Ash porque as presas de Rune apareceram por entre seus lábios. Um dia depois, a região do meu pescoço que Ahin havia mordido ainda ardia.
“Então, imaginei…. E se você tiver se aproximado de Ahin Grace de propósito, com alguma intenção oculta…?”
Eu não tive nenhuma escolha, como assim me aproximei de propósito!? Tinha sido levada de casa e trazida à mansão dos panteras negras sem nem saber onde estava. Não sabia se deveria agradecer a Rune por sobrevalorizar minhas habilidades.
“Escondendo sua identidade e levando muitos segredos… Mas, com esse corpo tão pequeno quanto um feijão, o que você conseguiria fazer?”
<É rude me chamar de feijão!>
Ele me dá um elogio e logo em seguida me insulta. Indignada, pateei o chão com a pata traseira.
“Parando pra pensar….”
Rune, que não reparou na minha reação, falou.
“Por que estava vestida daquele jeito na noite do baile? Quanto mais eu penso, mais suspeito é. Mesmo agora, sinto feromônios de pantera negra vindo de você. O que está escondendo?”
Enquanto falava, ele olhava para nós, refletidos no vidro da varanda. Parecia um louco falando sozinho com dois animais. Enquanto olhava para o reflexo, me lembrei do que Ahin tinha dito. Ele falou que ia injetar seus feromônios em mim para esconder dos outros o fato de que eu era um homem-besta. Ahin queria esconder meus feromônios dos outros?
<…Por quê?>
Ele também havia demonstrado que eu me humanizar era algo negativo para ele. Analisando tudo, pensei com cuidado. Em retrospecto, receber feromônios não necessariamente me fazia virar humana. Achava que precisava recebê-los numa altíssima concentração, como quando encontrei aquela mulher-besta raposa ou os homens-besta lobos durante a batalha.
Não dava para entender esse quebra-cabeças, e as peças pareciam cada vez mais misturadas. Assim que minha cabeça começou a dar voltas, Rune de repente se inclinou e levou o dedo aos lábios. Ele parecia muito sério. Eu não conseguia emitir sons, era ele quem tinha que se calar! No entanto, assenti levando as patas dianteiras à boca para não envergonhá-lo.
Rune, se esgueirando contra a parede, se aproximou do parapeito da varanda. Eu o segui e pus a cabeça entre as barras para ver o que estava acontecendo.
Dois homens, que tinham saído sabe-se lá de onde, pareciam estar em uma conversa secreta. Era claro que estavam querendo esconder algo, pois apesar de estarmos apenas no primeiro andar, não dava para ouvir nenhum som vindo deles.
“As drogas espalhadas na região de Qatar estão sendo usadas por civis. É uma droga à base de feromônios. Uma vez que os efeitos são muito variados, a chance de serem drogas experimentais é muito alta.”
Assim que me lembrei do que Evelyn havia dito na carruagem, Rune fez “tsk” com a língua. Embaixo de uma varanda de uma hospedaria remota era o lugar ideal para uma troca secreta de drogas. Eles pareciam ter pensado assim.
<Oops!>
Meu corpo deixou o chão. Foi porque Ash me pegou com a boca, talvez descontente com o fato de eu ter colocado a cabeça entre as grades da varanda. Rune viu e com um rápido movimento me pegou com a mão.
<Parem com isso, suas bestas!>
Enquanto passava de um para a outro, minha visão ficou borrada. Me sentindo tonta, olhei para baixo e notei que estava fazendo contato visual com um dos dois homens que estavam lá embaixo.
Tradução: Nopa.
Revisão: Holic.