A Relação simbiótica entre uma lebre e uma pantera negra - Capítulo 118
À medida que a noite avançava, o ferimento no pescoço de Vivi foi desaparecendo por completo. As manchas de sangue no pelo branco foram a única prova de que, em algum momento, a ferida existiu.
Só podiam ser os feromônios curativos dela própria. A Professora Janna deduziu o que aconteceu, sem muitas dificuldades.
“Russell.”
Ela sacudiu o filho, que estava dormindo profundamente, tendo voltado à forma humana sem nem perceber.
“Acorde, tenho que te perguntar uma coisa.”
“Russell não está atendendo no consultório nesse momento.”
[A professora Janna não está atendendo nesse consultório no momento] era a frase que ela sempre usava para mandar pessoas embora quando estava ocupada. Ele tinha se humanizado pela primeira vez há pouco tempo e já estava copiando as palavras dela. A médica sacudiu Russell outra vez.
“Russell, preciso te fazer uma pergunta, acorde.”
“Já falei que não estou atendendo…”
“…Não me imite.”
“Ugh.”
Logo, Russell, que assim que se despertou, arregalou os olhos, correu para Vivi. Deitando-se no chão, ele a observou, com a testa franzida. Ela estava respirando tranquilamente. Parecia muito mais estável do que antes, quando sua respiração estava pesada.
A professora Janna, sentando-se ao lado do filho, perguntou suavemente.
“Russell, quando você teve sua febre antes da humanização definitiva, aconteceu algo de diferente?”
“Diferente?”
“Por exemplo… seus feromônios se comportaram de uma forma estranha? Você não se lembra, não é?”
“…Ficou muito mais fácil controlar meus feromônios.”
“De repente?”
“Hmm, sim. Antes era muito difícil. Então, do nada, ficou fácil. E eu virei humano.”
A Professora Janna, ao recolher essa informação inesperada, coçou o queixo. Então, através do ataque de febre, o corpo se adaptava aos feromônios. E depois, o homem-besta se humanizava.
Normalmente, os feromônios só se tornavam controláveis mais tarde na vida, com a pessoa já estando humanizada desde bebê. Mas, quando a humanização é retrasada, como no caso de Russell e Vivi, os feromônios vem primeiro.
Só então a Professora Janna deduziu porque a humanização de Vivi foi tão mais tardia do que a de Russell. Era difícil controlar feromônios de cura tão poderosos com um corpo herbívoro.
“Hmm…”
Obviamente, Vivi era incapaz de curar seus próprios ferimentos no dia em que ela a encontrou no território das lebres, pois tinha um pequeno corte na mão, o qual não se curou.
Se o próprio corpo tinha se curado por conta própria, queria dizer que os feromônios estavam totalmente estabilizados e adaptados, mais do que antes.
Isso queria dizer que a humanização definitiva ocorreria a qualquer momento.
***
Depois do pôr-do-sol, o céu que podia ser visto pela janela do gabinete estava escurecendo com uma cor sombria.
Sentado em sua mesa, Ahin trabalhava com tanta dedicação que era difícil de acreditar que, até aquela manhã, ele tinha estado acamado. Além disso, sua capacidade de processar documentos estava duas vezes mais rápida do que antes.
Os três ajudantes, encarando seu mestre, que hoje se mostrava sincero e trabalhador, começaram a tremer.
“Podem ir.”
Ahin sacudiu a mão como se afastasse um cachorro.
“Estão liberados.”
Eles arrumaram suas coisas na velocidade da luz. Ahin observou eles desaparecendo em fila indiana e voltou a se focar na pilha de papéis. O tempo estava passando devagar.
Ele olhou para o lado, onde havia um quadro de uma coelha com roupas de general, escalando majestosamente uma pantera negra. Esfregando os olhos e se sentindo cansado de repente, Ahin decidiu se levantar.
Enquanto isso, Evelyn, que estava a caminho do gabinete, escutou.
“Senhor Evelyn… nos ajude!!”
Ele teve que ouvir as queixas dos três ajudantes, que tinham acabado de sair dali. Ahin estava tão normal que eles estavam morrendo de medo. Eles falaram por mais de 30 minutos.
Evelyn, se sentindo preocupado com o Lorde, estava usando um diadema com orelhas de coelho, para desempenhar seu papel de secretário competente.
Todos os criados que o viam se sentiam constrangidos, corando e desviando o olhar. Mas depois de se acostumarem, até que o acharam uma graça.
“Por que está com esse lixo na cabeça?”
Dizendo isso, Ahin começou a caminhar para o seu quarto, lançando um olhar atravessado. Mas ao ver que ele estava sorrindo um pouco com o canto da boca, Evelyn percebeu que seus esforços não tinham falhado, afinal.
De volta ao quarto, Ahin suspirou. Um silêncio pesado imperava ali. Ele tirou sua gravata lentamente e abriu a camisa fazendo barulho, mas não havia nenhum olhar fixo o encarando.
Saindo para a varanda, Quinn, que estava empoleirado no parapeito, olhou para Ahin. Ele estava analisando se havia algum sinal de que ele teria percebido a ausência da coelha, para notificar imediatamente a Valence.
Ahin, entendendo errado o olhar fixo e pensando que o homem-besta águia estava preocupado, falou.
“Estamos bem. Eu, e Vivi também. Falei com o esquilo imenso ainda pouco e ele disse que ela estava descansando.”
Ahin sorriu de modo transparente.
“Está tudo bem.”
Repetindo isso como se fosse um encantamento, ele fechou a porta da varanda e as cortinas atrás de si.
Tendo deixado Quinn para trás, Ahin procurou debaixo da mesa, do sofá, e até mesmo olhou debaixo da cama. Naturalmente, não havia nada ali.
Ele ficou olhando para o teto, sem expressão. Tudo estava bem. Ia ficar tudo bem.
Haviam vários sinais de que seus ataques de feromônios nunca mais iriam voltar, e Vivi estava melhorando.
As feridas de ambos iriam desaparecer com o tempo. Ele tinha confiança de que Vivi o perdoaria se ele se prostrasse aos seus pés e implorasse.
“Por isso, está tudo bem.”
Essa frase que ele repetia em sua cabeça, sem parar, parou de repente. Só o som do tique-toque preenchia o quarto vazio.
“Lorde Ahin?!”
Os cavaleiros que guardavam a porta arregalaram os olhos quando Ahin saiu do quarto apressado, sem nenhum aviso. Os deixando para trás, ele correu pelos corredores.
‘Por que me sinto tão nervoso?’
Chegando na frente da porta do quarto de Valence, onde Vivi estava dormindo, ele ofegava. A porta estava trancada e guardada de tal modo que ele não podia fazer nada.
“Perdão, Jovem mestre, mas recebi ordens de não permitir sua entrada.”
Cavaleiros de armadura estavam guardando a porta, e olhando para Ahin com alarme. Por serem da escolta pessoal de Valence, até mesmo Ahin teria dificuldades de derrotar todos, se viessem contra ele ao mesmo tempo.
“Eu não quero entrar.”
Ele sabia que não podia. Vivi poderia piorar se o ferimento abrisse ao fugir dele outra vez. Ainda assim, ele ficou ali, olhando para a porta e os cavaleiros.
‘É engraçado.’
A coelha que ele recolheu estava sendo escoltada pelos cavaleiros exclusivos da líder do clã. E não tinha demorado muito para que Evelyn, um homem oportunista, tivesse virado a casaca e ido para o lado de Vivi.
Ahin levou a mão à cintura, como se fosse desembainhar sua espada. Ele podia fazê-lo rapidamente e os cavaleiros iriam cair antes que entendessem o que os acertou. Mas o cinto de Ahin estava vazio, sem espada nenhuma.
‘É mentira que eu não quero entrar. Queria pelo menos ver sua cara. Sei que riria ao ver a minha, agora…’
Ahin, sorrindo de modo triste, encostou a testa na porta.
‘Ao menos, deixe-me ficar próximo a você.’
Os cílios longos formavam sombras em seus olhos. Quando ele os fechava, se lembrava de Vivi, sofrendo com dor, e quando os abria, via Vivi fugindo com tanto pânico que não percebia que seu ferimento tinha reaberto.
‘Vivi, na verdade, não está tudo bem. Eu fico repetindo isso. Mas não está bem.’
Ahin, sentando-se encostado na porta, fechou os olhos.
‘Espero que ela esteja bem…’
Ele passou a noite toda em claro.
***
Abri os olhos de repente e vi um teto de madeira desconhecido. Minha visão, que tinha estado completamente enevoada, estava clara.
O fato de que eu tinha sofrido tanto com febre parecia uma mentira. Por alguma razão, nem mesmo podia sentir a dor do ferimento no pescoço, e meus feromônios corriam pelo meu corpo de forma leve e tranquila.
‘Não pode ser…Será que eu passei tantos meses dormindo que deu tempo de os ferimentos cicatrizarem por completo?!’
Pensando isso, estiquei a pata dianteira, para verificar a condição de meus membros. Mas o que apareceu em meu campo de visão, apontando para o teto, foi um longo braço. Em vez de uma trouxa de algodão, a luz da lamparina brilhava por entre finos dedos.
Só então me lembrei das vozes da Professor Janna e Quinn, no que percebi que não tinha sido um sonho, afinal.
“Então, a coelha está se humanizando?”
“A causa de todos os sintomas da senhorita Vivi batem com os sintomas da febre que precede a humanização definitiva. Não tem relação com o ferimento no pescoço.”
“…Quase vinte anos atrasada… E agora, de repente? Por quê?”
“Como se pode saber, tratando-se desses casos únicos? Quando ela acordar, poderemos saber mais. Agora, tudo que posso fazer é aplicar analgésicos para diminuir o desconforto da febre.”
Poderia ser verdade? Me sentando no chão, onde tinha estado deitada, rapidamente puxei um lençol próximo para me cobrir.
‘Como…?’
Como eu tinha ido parar nessa cabine de madeira? Meu olhar confuso se dirigiu para a Professora Janna, que estava dormindo sentada com a cabeça apoiada na mesa.
‘Preciso me acalmar…’
Tinha que recobrar a razão e raciocinar. Eu, Vivi, não sou mais uma coelha covarde. Não há razão para ter medo.
‘Vou me levantar, primeiro.’
Amarrei o lençol como um vestido, me arrepiando quando pisei em algo desconhecido. Então, percebi que haviam pelos marrons espalhados no chão.
Espiando ao meu lado, pude identificar o dono desses pelos.
‘Uma capivara…?’
Seria Russell? Enquanto arfava de febre, tive a vaga impressão de tê-lo visto. Ele devia ter ficado próximo a mim, para me aquecer.
Com uma expressão comovida, toquei minha nuca com os dedos trêmulos. Pude sentir uma marca forte, não apenas tênue, como antes.
‘A marca ficou mais profunda.’
Para testar, liberei feromônios curativos no ar. Se eu os usasse sem o Ferenium, naturalmente voltaria à forma de coelha bebê. Mas, mesmo após soltá-los por muito tempo, me mantive na forma humana.
‘…Isso é impossível…’
Humanização definitiva…! Não consegui acreditar, mesmo após ter feito o experimento. Quem iria aceitar tão facilmente que aquilo que desejou a vida toda se realizou, do nada?
Dei um tapa nas bochechas e rangi os dentes. Depois de ter várias ideias ansiosas, consegui pensar em algo bom.
Os homens-besta que tinham se humanizado de forma definitiva, quando em sua forma verdadeira, pareciam com animais adultos. Se eu voltasse à minha forma original e não fosse mais um coelho bebê, e sim uma lebre adulta, isso seria a prova final.
‘Mas, como faço para mudar de forma?’
Até então, sempre tinha acontecido de forma involuntária. Enquanto eu olhava para minhas mãos, vi os olhos negros de uma capivara me encarando.
“Russell?”
Assim que chamei seu nome, incerta, ele saltou em meus braços e se aninhou. Tinha escutado que eles eram os maiores roedores do planeta. Surpreendida pelo peso, maior do que eu imaginava, o abracei enquanto cambaleava.
Depois da reunião emocionante, onde eu esfreguei a bochecha em seus pelos macios, sussurrei em voz baixa, de modo a não acordar a Professora Janna.
“Você pode me ensinar a voltar à minha forma original? Igual a como você fez para virar uma capivara…”
Vendo meu olhar de expectativa, Russell começou a chacoalhar os quadris animadamente.
“O que é isso?”
Enrolada no lençol, perguntei, incerta.
“Está dizendo que enquanto me sacudo…. Os feromônios devem ser liberados…?”
A capivara assentiu vigorosamente, como se não fosse necessário explicar nada mais. O rosto calmo e tranquilo dele passava confiança.
“Posso chacoalhar os quadris, mas…”
Não era hora de me envergonhar. Os feromônios eram diferentes para cada um, mas o caso de Russell era o mais próximo do meu, de todas as pessoas. Não podia ignorar o que ele tinha me ensinado.
Determinada, fiz a dança tradicional do clã das lebres, que incluiu chocalhar os quadris. Enquanto isso, liberei feromônios com cuidado. Meu corpo se envolveu num raio de luz e minha visão foi ofuscada.
Logo, estiquei o braço e o que vi foi uma pata dianteira familiar, em vez de uma mão.
<Eu voltei!>
Espelho, espelho.
Girando a cabeça, localizei um espelho de corpo inteiro no canto da sala. Corri até ali, escutando Russell trotar atrás de mim.
Chegando na frente do espelho, fiquei de pé nas patas traseiras, engolindo o nervosismo.
<Se for como eu penso, devo ser… uma lebre adulta…>
E logo, a imagem de uma bola de algodão, com uma capivara atrás de si, apareceu no espelho.
Tradução: Nopa.
Revisão: Holic.